Critica do filme Corações Sujos

 

Dos cineastas brasileiros familiarizados com o cinema internacional, Vicente Amorim é talvez o que mais se identifica com uma linguagem clássica e uma temática que muitos tomam como universal, enquanto para outros pode parecer de baixo conteúdo identitário. O Caminho das Nuvens e Um Homem Bom, seus dois longas de ficção anteriores, traziam a mesma dissolução das marcas nacionais num tratamento modelado pelas grandes tradições cinematográficas. 
 
Corações Sujos é não somente o seu melhor filme, como o de resolução mais complexa nesse seu compromisso do local com o geral. Lidando com uma história passada na colônia japonesa do interior de São Paulo, Vicente adotou um estilo mais identificado com o cinema japonês de Akira Kurosawa (nas cenas de violência) e Nagisa Oshima (nos momentos de maior intimismo). É o que em parte explica a quase onipresença da trilha sonora – embora não a abundância de violinos ou a incômoda lembrança dos acordes do tema principal de A Lista de Schindler. 
 
A trama concebida originalmente por Fernando Morais no romance histórico homônimo deve ter sido um grande desafio para o roteirista David França Mendes. Tê-la retirado do escopo de filme policial para focar o conflito intestino entre os nacionalistas, os aproveitadores e os lúcidos desfez qualquer perspectiva maniqueista e nos introduz no cerne da tragédia que abalou a colônia ao fim da II Guerra. O fotógrafo Takahashi (Tsuyoshi Ihara), convocado pela fúria nacionalista para eliminar os “corações sujos” (os que acreditam na derrota do Japão), representa a submissão à fé cega, alguém cujo raciocínio se deixa paralisar pela obediência a um dogma. Sua esposa, a professorinha Miyuki (Takako Tokiwa), é a consciência que resiste e sobre a qual rebatem os fatos da época. No filme, os homens se entregam à ação e à reação, ao passo que as mulheres atuam como câmaras de eco moral. 
 
Há na construção de Corações Sujos algumas forças que se somam e outras que disputam seu lugar. A sobriedade do excelente elenco japonês, por exemplo, faz um belo contraponto com a intensidade emocional buscada através da música e da empostação muito carregada de algumas cenas. De outra parte, a convenção e a invenção brigam por se afirmar a cada momento. Os paralelismos ousados do roteiro, a construção espacial de cenas como a confrontação de Takahashi com o diretor da cooperativa rural e o desenho sonoro que caracteriza a relação de Miyuki com as galinhas são exemplos de bravuras que renovam o interesse do espectador. Já o uso de elementos como a chuva e os desfoques, além do glamour do casal que leva a um desfecho anticlimático, pesam na conta dos clichês. A moldura de história de amor, aliás, me parece o item mais questionável de todo o projeto, uma vez que não chega a ser desenvolvida a contento para justificar as cenas finais. 
 
Sem ser um filme perfeito, Corações Sujos tem força e competência suficientes para engajar o público e levar adiante a reflexão que Vicente Amorim vem oferecendo sobre os excessos do nacionalismo. Sua opção por um cinema relativamente desnacionalizado deve ser considerada como parte dessa proposta temática.